quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Uma Outra Felicidade Clandestina

Acontece que o menino vive em dúvida. O correr de sua vida depende de sua objetividade e organizacão. Já o menino ele mesmo, prefere que sua vida ande sinuosamente devagar e lhe permita colocar metáforas no mundo.

Ele já aprendeu que a Vida é implacável, e decidiu curtí-La como vier. Decidiu que não ia ser comunista, nem jogador de futebol, porque teve medo da Vida castigá-lo. Ela é uma amante dominadora, quer te possuir e te fazer objetivo, ou você prefere a alternativa: morrer só?

Quase invariavelmente entregamo-nos a Ela. E, neste caso, exigimos só uma coisinha. Isso, claro, só se Ela puder nos dar, se não nos conformamos em não receber ou receber em tamanho pequeno. Tudo que queremos da Vida é uma identidade.

A aparicão da identidade ocorre bem cedo quando nos perguntam o que vamos ser quando crescer. É quando percebemos que ser astronauta é menos provável que ser jogador da selecão. Então decidimos ser jogador da selecão, mas nossa mãe não deixa porque não daria tempo de ir pra escola e estudar muito pra ser alguem quando crescer. Esse é um momento delicado, porque algumas raras criancas correm o risco de cometer uma reflexão que mudaria drasticamente suas vidas: eu sou alguem, embora não tenha crescido ainda. Conceito que adulto não entende, porque pra ele o que é óbvio não é óbvio. Na verdade ele só entende de coisas complicadas, que são as coisas nas quais ele pensa. Então, as criancas que cometem essa reflexão perdem a crenca nos adultos e não ligam quando eles falam que ter uma identidade é a coisa mais importante na vida, tão importante que se confunde com a vida em si.

Acontece que o menino cometeu essa reflexão com o coracão, mas guardou-a lá. E o coracão dele é sinuoso como ele gostaria que sua vida fosse, mas não é. E sua reflexão acabou não afetando sua mente.

Assim, lendo Clarice perto da meia-noite, ele comeca a sentir aquele tremor que costuma impedí-lo de dormir cedo e trabalhar para sua identidade desde a manhãzinha. Aqueles contos aticam o menino e o pastoreiam por metáforas vivas.

Ele sente a dissolucão de sua identidade em seu entorno. Emerge vigorosamente um ser intuitivo que espreita os arredores quietos da noite para saborear a sensacão de não ser testemunhado. Sorri, olhando agora para dentro.

Clarice, que seria o nome da menina que sua família quase adotou quando ele tinha 6 anos, é a compreensão e a genuinidade. Clarice é o telescópio para o interior do Ser, para quem a identidade é uma superfície transparente. Clarice é o ser mais sedutor do mundo, e o menino com sua tendência para o encanto, olha pra si e vê Clarice.

Ele desce a escada e inicia sua odisséia pessoal, escrever-se para outros. Assim como Clarice fez, ele faz no escuro, além das expectativas terceiras, ele faz sem poder, mas porque deve, porque neste pequeno momento ele acredita que é mais importante que sua própria vida, e porque se esqueceu que tem uma identidade.